Textos Literários em Álbum

“Uma lágrima sobre um túmulo”

Era a hora do silêncio e do repouso, hora mágica ― misteriosa ― grande ― sublime ― majestosa como Deus! Triste, melancólica como a imagem do túmulo… porém que […] para a minha alma, por isso que minha alma ama a melancolia!!…  E eu te saudava, hora mágica ― e sublime!!! E eu subia no cume do rochedo… E tu eras grande ― e misteriosa como o mesmo Deus!!!…

Doze horas soaram… A noite estava silenciosa ― e erma. E eu estava sobre o cume do rochedo. Era o silêncio dos túmulos que aí reinava!!! hora santa ― e respeitável, como a imagem de Deus ― eu te saudava!…

Ao longe Álcion [Alcíone, mulher transformada em pássaro por Zeus], gemia, gemia, sobre as águas ― e o mar mansamente beijava as cavidades do rochedo. Mas o rochedo estava imóvel porque a voz do Senhor ele se havia erguido: ― e esta voz que o erguera, brandamente soava no murmúrio da viração.

E eu chorava porque a meus pés estava um túmulo!!! E as estrelas que prateavam a abóbada celeste ― e o mar que alvejava no seu leito, ― e a brisa do Sul que me rociava as faces, ― e o verme, que se arrastava para a sua presa, ― e o orvalho que se pendurava das ramas ― estavam mudos e tranquilos. Só eu tinha o coração opresso por isso que a meus pés estava um túmulo!

E ninguém partilhava a minha dor!… E os raios da lua começavam a pratear as águas… e um branco sudário se desdobrava, sobre a tema ainda revolta da sepultura. Mas a lua passava e o sepulcro já era tudo sombras: ― e minha dor prosseguia, sempre ainda, sempre crescente!!

Oh! Sim!… E para sempre escondida aquela que eu tanto amara!… Eu chorava… No silêncio da noite, minha dor, tocava a desesperação. O mar desdobrava-se a meus pés, ― as estrelas cintilavam, sobre minha cabeça, ― a viração andava em torno de mim. Deus se me revelava em cada um daqueles objetos. Oh! eu amo a Deus porque Ele é justo, ― santo ― e onipotente.

No auge da minha desesperação, deixei o rochedo. Indignou-me ver tudo tranquilo ― tudo indiferente à minha dor. Deus! Ajoelhei sobre a terra ainda revolta do sepulcro, e meu espirito sentiu amarga consolação. Por quê? Porque Deus amerceou-se [compadeceu-se] de mim. Eu chorei sobre a sepultura, mas era um pranto já mais resignado…

Eu a tinha visto morrer, e não tinha desesperado. No auge da minha dor, soltei uma blasfêmia… mas o arrependimento apaga a nódoa do pecado ― e eu senti renascer em meu coração sentimentos mais dignos do meu Deus. Ele me havia perdoado.

E eu que tinha visto seu corpo fugir-me, atendendo à voz do sepulcro, que o reclamava… e eu que vira seu espírito abandonar-me porque à voz do Senhor… pude ver, e não desesperei?!!

Oh! Deus!… Deus… de Ti veio-me o bálsamo de resignação.

Mas ao silêncio, sussurra a hora da arvorada ― e minhas lágrimas corriam mais suavemente. A resignação entrara em minha alma. O amargor estava ainda em meu coração, ― mas a hora que aprazia a minha alma já havia passado.

A noite já de todo havia desaparecido: ― as flores desabrochavam meigas, e risonhas, ― ao voluptuoso bafejo da manhã: eu já não tinha lágrimas, porque o Senhor as trocara pela resignação.

Então, entoei um hino ao Deus dos Exércitos… Minha alma exalou um suspiro de saudade, ― e circundei de flores o túmulo da que tanto amei!

A hora do silêncio tinha passado, e eu {que} por um instante duvidara da bondade eterna, consolidava já meu coração na crença do seu Deus.

E cessei de chorar porque o seu espírito estava em Deus!!!!

Maria Firmina dos Reis

20 de maio de 1853

 

 ***

 

“Resumo da minha Vida” (1863)

De uma compleição débil e acanhada, eu não podia deixar de ser uma criatura frágil, tímida, e por consequência melancólica: uma espécie de educação freirática, veio dar remate a estas disposições naturais. Encerrada na casa materna, eu só conhecia o céu, as estrelas, e as flores, que minha avó cultivava com esmero, talvez por isso eu tanto ame as flores; foram elas o meu primeiro amor. Minha irmã [Amália Augusta dos Reis]… minha terna irmã, e uma prima querida [Balduína A. dos Reis], foram as minhas únicas amigas de infância; e nos seus seios eu derramava meus melancólicos, e infantis queixumes; porventura sem causa, mas já bem profundos.

II

Mas a infância passou, como passa para todo homem, e eu tive mais vigor e minha vida adquiria mais forças; meu coração como que expandiu-se um pouco, vívidos raios de sol da adolescência. A mulher é como a flor, esta sonha meiguices ao despertar do sol, porque o sol que surge há de afagá-la, sorrir-se […] de felicidade sem lembrar-se a pobrezinha que esse viver de deleites é dum momento, e que esse mesmo sol, que tão docemente a seduziu em seus transportes amorosos com suas faíscas ilusórias, vai-lhe roubando a vida e os encantos. Aquela no desabrochar da vida cisma um futuro radiante, e belo, belo como o céu. Eu experimentei já essa doce ilusão que mais faz amargar os últimos dias da existência. Era um débil e transparente véu que estava ante meus olhos, rasguei-o, vivi um deleitável paraíso, que me seduziu, e que me enlevou, que me transportou; da minha melancolia infantil, passei insensivelmente a um meigo olhar inocente de felicidades. Ah! por que tão depressa fugiste. Ah! por ela fugiste, idade única da vida, em que eu pude sonhar esse sonho que o poeta inveja, em que pude gozar esse gozo puro que assemelha, que arremeda a bem-aventurança dos anjos!…

Passou, e embalde, embalde anda a procuro. O que foi que tão depressa me fez esquecer os meus sonhos da adolescência, o meu gozar dos anjos? Quem se atreve de novo a cerrar sem piedade esse véu que débil, na infância, me ocultava o paraíso, e que agora ainda se tornou mais espesso, mais negro e compacto.

III

O mundo! Esse espelho impassível, cruel […] desfazer as nossas mais gratas, mais lisonjeiras esperanças! A sucessão dos anos apagou-me o fogo do coração, resfriou-me o ardor da mente, quebrou na haste a flor de minhas esperanças. Que porvir tão belo imaginava eu no doce delirar de minhas ideias! Nos meus sonhos mentirosos que futuro radiante se me antolhava [manifestava aos olhos]! Ah! Tudo, tudo uma cruel realidade. Destruí-o para sempre. Tudo: meu coração outrora tão ardente, hoje apenas sinto-o levemente estremecer no meio do gelo, que o circunda E os poetas dizem. “O amor vivifica os corações ― o Amor é a felicidade da vida, é a vida da nossa existência: talvez. Amei eu já acaso? Não sei. Amor ― acrescentarei eu, é uma paixão funesta ― é o amor quem espreme no mundo tanto fel, tanta amargura, é quem torna a vida peso insofrível, por demais incômodo. Amor que abre ao homem a senda do prazer e da vida é também quem cerra sobre ele a lousa da sepultura. Entretanto o amor é necessário ao coração do homem, quanto o ar é necessário à vida. Amor, amor, deixemos aos poetas esse dom celeste, e infernal, doce e amargurado, inocente e criminoso; não amemo-nos. As ilusões fugiram, fugiram as esperanças, que me resta pois? Uma mãe querida e terna, uma irmã desvelada e carinhosa. Ajudada por elas, arrastarei o peso desta existência até despenhar-se na sepultura. Porque me dás o sofrer, eu te bendigo, porque me permitiste a recordação de um passado mais venturoso! Oh! quantas vezes reclinada a fronte escandecida, sobre a mão gelada pela dor, eu lembro esses dias de infância que passei no regaço de minha mãe, e entre folguedos tecidos por mim, e por minhas duas amigas, folguedos, que começavam para mim com um magnético encanto, e que logo se iam tornando tristonhos e melancólicos, como minha alma, e que terminavam por um choro doído, suposto que sem causa. Meu coração sentia naquele chorar um amargo prazer, sentia uma dor, que ainda querendo, não o saberia explicar: inda assim eu era feliz! Ou então toda entregue a um profundo desalento, quanta vez, meu Deus, a mente vai buscar todas essas fases da vida por que tenho passado! Esses ligeiros anos de esperanças, e de gozo, e depois estes compridos e insofríveis anos de amarguras, de tédio, de desgostos, de dores, não imaginárias como a infância; mas fundadas em outras dores, filhas de grandes e muitos sofrimentos. Vida!… Vida, bem penosa me tens sido tu! Há um desejo, há muito alimentado em minha alma, após o qual minha alma tem voado infinitos espaços, e este desejo insondável, e jamais insatisfeito, afagado e jamais saciado, indefinível, quase que misterioso, é pois sem dúvida o objeto único de meus pesares infantis e de minhas mágoas. Eu não aborreço [me aborreço com] os homens, nem o mundo, mas há horas, e dias inteiros, que aborreço a mim própria.

Que será pois o que sinto? Amo a noite, o silêncio, a harmonia do mar, amo a hora do meio-dia, o crepúsculo mágico da tarde, a brisa aromatizada da manhã; amo as flores, seu perfume me deleita: amo a doce melodia dos bosques, o terno afeto de uma mãe querida, as amigas de minha infância, e de minha juventude, e sobre todas estas coisas amo a Deus; e ainda assim não sou feliz, porque insondável me segue, me acompanho esse querer indefinível que só poderá encontrar satisfação na sepultura.

Sem data

 

***

“O que é a vida”

O que é a vida? Será acaso a vida o respirar, o sorrir no trocar de cumprimentos banais e quantas vezes frívolos… o banquetear com aparatosa regularidade, com suntuoso luxo dos amigos, algumas vozes tão indiferentes, e alheios aos sentimentos de afeto, e de amizade que lhe votamos, e até estranhos à gratidão; por que, depois de termos colhido os nossos sinceros afagos vão cuspir sobre eles, seu sorriso de escárnio?… Será isto vida? Não. Ou será então o deslumbrante e sedutor aspecto de um salão dourado, cujo ambiente perfumoso pode encher o coração de mágicos transportes…? Será aí onde as flores de um buquê furta-se um beijo de leve, voluptuoso… será os sons de orquestra afinada, que arrebatando os sentidos enleados vai de envolta com um bruxulear de magníficos candelabros excitar desejo, despertar ideias, acender no coração um fogo, que logo abrasando-o rapidamente se esmorece, e morre ao último som da derradeira polca ― ao último luzir da reverberante iluminação da sala…?

Ou será a vaidade satisfeita pela posse de um rosto que a natureza adornou com a perfeita formosura dos anjos ― uns olhos onde se retrata toda a beleza da alma, uns olhos que falam de amores, desses que o mundo procura em vão conhecer e que parece que só devem existir em Deus, porque o mundo é assaz pequeno para contê-los ―  uns olhos que são um orgulho de quem os tem, e a inveja viva de quantas a rodeiam? Será talvez tudo isso: ― mas eu o nunca vivi; ou se vivi, compreendi a vida por outros desvios, por outras sendas, por onde nem todos passam. Penso e sinto: meu sentir e meu pensar não os compreende ninguém; porque também a ninguém os revelo.

A vida para mim está nas lágrimas. Amo as que verto na amargura pungente de minhas ternas desventuras; com elas alimenta-se minha alma, elas acalmam o rigor do meu destino.

Lágrimas! Lágrimas… Elas despontam cristalinas e brancas no berço do recém-nascido, elas nos seguem amargas e pungentes no caminhar da vida ao túmulo; e ainda na derradeira agonia, nem uma lágrima silenciosa, como um adeus à vida serena a ardência das faces requeimadas pela febre da gangrena.

Eu amo as lágrimas…

Elas têm sido as companheiras da minha árdua e penosa existência; é nelas que tenho achado meu conforto, nelas é que me hei estribado para chegar ao breve termo da minha longa peregrinação… Amei-as na infância, porque elas embalavam-me docemente em ilusório sentir; eu as invocava por simpatia. Depois o amor ― e o amor ― não pode vigorar sem lágrimas.

Elas me sorriram nessa quadra poética da existência, que para mim passou tão breve! elas vinham dos olhos de seio, como a gota filtrada na rocha, doces e voluptuosas banhar-me o coração com sua inefável fresquidão.

E quando a mão de Deus mandou que esse amor tão belo cedesse ao sopro álgido da morte oh! essas antigas companheiras colocaram-se constantes ao meu lado; e como orvalho sagrado, elas de então para cá jamais cessaram de umedecer a estéril e poeirenta senda que tenho vagamente percorrido.

É então que fiz das lágrimas um sacerdócio, ― é quando conheci então que a vida está nas lágrimas… Triste do homem que não as tem…

Guimarães, 15 de junho de 1873

 

[1] Transcrição em forma de poema por: XIMENES, Ségio Barcellos. In: https://aarteliteraria.wordpress.com/2017/12/06/o-album-o-diario-de-maria-firmina-dos-reis/#K 

 


Fonte: A Arte Literária | Blog sobre a história da literatura e a literatura em geral – Sérgio Barcellos Ximenes – 04/12/2017)