Subscreve-se para para esta obra…*
No nascente mercado literário do século XIX, era bastante comum que “editores” empregassem a estratégia de assinaturas para venderem seus livros. As subscrições eram um tipo de venda baseada na confiança estabelecida entre proponentes e leitores (subscritores) – estes últimos, comprometiam-se a pagar quando fossem receber o exemplar e, assim, garantiam a publicação da obra. O mesmo acontecia para as histórias publicadas em capítulos, como os folhetins.
Vale lembrar “que em meados do século XIX não havia editoras no Brasil. As tipografias imprimiam periódicos e livros que geralmente eram viabilizados pelo sistema de subscrição antecipada. Também não havia editores de texto: os periódicos literários, por exemplo, eram produzidos domesticamente, em regra por um grupo de amigos, e depois levados à tipografia para impressão” (XIMENES, 2017).
Com base nisso, entende-se que a prática de divulgação e venda de livros, por meio de pedidos de subscrições, desenvolvida nos jornais oitocentistas brasileiros visava, principalmente, garantir um número suficiente de compradores para determinados livros.
Antonia Pereira de Souza, em A prosa de ficção nos jornais do Maranhão Oitocentista (2017), analisa alguns anúncios que divulgavam coletas de assinaturas ou subscrições para a prosa de ficção nos jornais maranhenses do século XIX. Segundo ela, esses anúncios de assinaturas, além de apresentarem e descreverem as obras, também revelam os caminhos percorridos por um livro naquela época, a partir da divulgação das cidades onde ocorriam as subscrições (SOUZA, 2017, p.227), constituindo-se, assim, em importantes fontes para as análises e pesquisas atuais.
A autora observa que tipografias, bibliotecas de outros países com filiais em São Luís, assim como livrarias recorriam ao sistema de subscrições, sobretudo, para uma grande quantidade de livros, ao mesmo tempo. Entretanto, a pesquisadora nota que algumas obras ganhavam anúncios independentes, o que lhes dava mais visibilidade e atraía mais compradores, essa estratégia geralmente era empregada na campanha de lançamento de livros (SOUZA, 2017, p.203).
De acordo com Antonia Souza, o romance Úrsula recebeu uma subscrição anunciada de forma independente, que apresentava um longo prospecto sobre a obra e a autora, que embora mantida anônima, era referida como “jovem maranhense”, “autora brasileira”, explicitando que a autora era mulher. Esse anúncio foi veiculado na seção Publicações Pedidas, no jornal A Imprensa, de 17 de outubro de 1857, ano I, número 40, página 3, segunda coluna (SOUZA, 2017, p.232).
A resenha revela, antes de tudo, uma informação muito importante: Úrsula já estava pronto em 1857!! ano em que, por exemplo, José de Alencar publica o romance O Guarani, em folhetins, no jornal Diário do Rio de Janeiro.
Sérgio Barcellos Ximenes (2017) afirma que “em todas as fontes disponíveis na internet, em livros e em trabalhos acadêmicos, um só ano é associado ao romance: 1859. A informação consta da folha de rosto da primeira e única edição de ‘Úrsula’” .
Entretanto, dois trabalhos, atualmente, abordam essa resenha de 1857: o primeiro, a tese de doutorado A prosa de ficção nos jornais do Maranhão Oitocentista, de março de 2017, desenvolvida pela pesquisadora Antonia Pereira de Souza, em João Pessoa, PB (acima citada), que não tem a escritora como tema central do estudo; o segundo, é a postagem intitulada “A história do romance Úrsula”, de 2018, no blog A Arte Literária, de Sérgio Barcellos Ximenes (autor também citado anteriormente), que faz um interessantíssimo estudo sobre a obra da escritora, apresentando uma pesquisa detalhada da obra e da vida de Maria Firmina e sua atuação na imprensa. Ele relata que:
“Alguns meses depois de ter encontrado essa primeira resenha de “Úrsula”, na hemeroteca digital da Biblioteca Nacional, uma surpresa: ao baixar a tese de doutorado intitulada “A prosa de ficção nos jornais do Maranhão Oitocentista”, de Antonia Pereira de Souza (João Pessoa, PB), descobri que o texto da resenha fazia parte da página 232 desse trabalho, apresentado em março de 2017” (XIMENES, 2017).
Em termos gerais, essa nova informação reforça a importância da continuidade das pesquisas sobre Maria Firmina dos Reis, que tem se desenvolvido com maior profundidade nos últimos dez anos, e aponta ainda para a possibilidade de descoberta de novos materiais e informações sobre a escritora, como já observou a pesquisadora Jéssica Catharine Carvalho (CARVALHO, 2018, p.82).
Enfim, o anúncio em questão apresenta o resumo do livro, ambientação da narrativa, caracterização de personagens e algumas informações sobre os processos e condições de produção da obra. No final, apresenta o objetivo:
“Subscreve-se para esta obra na tip. [tipografia] do Progresso, do Observador, do Diário [do Maranhão] e do Publicador [Maranhense] ― preço por cada exemplar brochado ― 2s000rs”. (SOUZA, 2017, p. 232). Muito provavelmente, não houve resposta positiva do público a esse chamado (XIMENES, 2018), tudo sugere que o anúncio não conseguiu garantir o número suficiente de compradores/subscritores que financiariam a publicação da obra.
Três anos depois, as subscrições do romance ganharam versão resumida com: título (seguido da expressão “romance brasileiro por uma maranhense”), informações sobre o volume, o tamanho e o preço, que não mudou, além do apelo de que vender o livro “singelo e elegante” representaria ânimo para a escritora “modesta” e “talentosa maranhense” (A Imprensa, 11/04/1860, n. 29, p.4). (SOUZA, 2017, p. 232)
O primeiro anúncio do romance, em 18 de fevereiro de 1860 (A Imprensa, ano IV, número 11), apresentava a chamada a subscritores – “Assina-se nesta tipografia”-, o que sugere que o romance ainda não havia sido impresso. Após cinco meses e meio de divulgação por meio de quatro anúncios de subscrições (“A Imprensa”: 18 e 22/2; 11 e 16/4), o anúncio de venda do livro “Úrsula” começa a circular em 1º de agosto de 1860, no jornal A Imprensa, três anos após a publicação de sua resenha.
O anúncio que circulou nos Publicador Maranhense e A Imprensa não identificava o nome da autora. Informava que o livro estava sendo vendido na livraria de Antonio Pereira Ramos de Almeida, e na Tipografia do Progresso. “A Tipografia do Progresso chamava-se Tipografia Maranhense. Eram comuns as publicações que substituíam os nomes das empresas pelos periódicos que veiculavam” (SOUZA, 2017, p. 203).
A partir de fevereiro de 1861, anúncios de venda descreviam Úrsula como “excelente romance”, assinalando mudanças nas impressões sobre a obra (SOUZA, 2017, p. 232) e nas estratégias de anúncio do livro.
Ao todo, de 18 de fevereiro de 1860 a 17 de setembro de 1862, foram publicados 50 anúncios de Úrsula (XIMENES, 2017) nos jornais “A Imprensa”, “A Moderação”, “Publicador Maranhense” e “A Coalição, sendo 4 anúncios de subscrição e 46 anúncios de venda.
Sérgio Barcellos Ximenes (2017) ressalta que a maioria dos anúncios aparecia em destaque na página, e nenhum deles foi acompanhado de outro livro vendido pela tipografia. Ele destaca ainda que também não foram encontrados anúncios de outros livros nos quatro jornais, a não ser de um eventual Almanaque tradicionalmente vendido no final de um ano. Para ele, Úrsula reinou sozinho nos anúncios dos jornais do Maranhão, durante mais de dois anos.
Essa divulgação incomum para os padrões da época (dois anos e meio), parece indicar uma boa receptividade à obra de Maria Firmina, demonstra que a obra se manteve no mercado, e que, portanto, possuía leitores. ( SOUZA, 2017, p. 233; XIMENES, 2017).
Lendo a resenha de 1857
A resenha do romance Úrsula publicada na terceira página do jornal A Imprensa, em 17 de outubro de 1857, é um anúncio de subscrição de livro, composto por dez parágrafos, que realiza a apresentação geral da obra ressaltando, sobretudo, o caráter ficcional do texto.
Analisando seu conteúdo, percebemos que ao descrever a ambientação da narrativa, a resenha aborda também questões sobre as condições de produção da obra, bem como lança luz para alguns elementos que poderiam fazer parte de um possível projeto literário e intelectual de Maria Firmina.
De modo geral, realiza a caracterização das personagens: são três parágrafos dedicados à apresentação da personagem Úrsula (5º-7 º§), descrevendo o seu caráter, seus defeitos e conflitos; e três linhas para apresentar os personagens Tancredo e Comendador. P; apresentando também, em quatro linhas, Túlio e Susana, personagens escravos da obra. Além disso, destaca o principal conflito do romance: o amor ideal entre Úrsula e Tancredo, em oposição à inveja do vilão Comendador P.
A resenha mantém a autoria da obra anônima, referindo-se à Firmina como “jovem maranhense” ou “autora brasileira”, explicitando apenas seu gênero, ou seja, lendo a resenha sabe-se que a escritora do livro era mulher.
De forma mais detalhada, no primeiro parágrafo temos informações biográficas: a autora é apresentada como uma “ jovem maranhense” que estreia na carreira literária. Temos informações sobre a edição: a expressão “que se vai dar ao prelo” deixa claro que o livro ainda não estava impresso, mas já estava pronto para ser editado. E traz ainda informações sobre o público a que se destinava o anúncio de subscrição do romance – o “Ilustrado Público da sua nação”.
Além disso, esse parágrafo traz uma breve análise crítica da obra, que é caracterizada como sendo de estilo simples, mas com a advertência de que essa seria mais uma característica do século, ou seja, a/o resenhista insere e situa a obra de Firmina num contexto de produção literária de época mais amplo, apontando alguns elementos temáticos explorados pela escritora, como o patriotismo e a questão da liberdade, pautados também nos debates sociais do período, mostrando que Firmina selecionou questões ligadas ao seu contexto para compor sua ficção.
O gênero literário do texto é identificado como romance de ficção: “ÚRSULA ─ é todo filho da imaginação da autora, jovem Maranhense, que soltando as asas à sua imaginação, estreia a sua carreira literária”. Essa informação ainda é enfatizada no segundo parágrafo: “Os personagens da sua obra, não os foi buscar num fato original; a existência desses entes criou-a ela, no correr da mente”.
O terceiro parágrafo, por sua vez, realiza a ambientação da obra a partir da contraposição rural/urbano, que para a/o resenhista, estava expressa na escolha de Firmina por ambientar seu romance a partir das descrições dos campos, matas e selvas do país (ou seja, a natureza – elemento característico do romantismo brasileiro); ao invés de optar pelas descrições do ambiente dos salões da corte, provavelmente bastante comuns nas narrativas da época. Esse parágrafo demonstra que o/a redator/a da resenha era ciente de que os procedimentos de feitura da obra estavam assentados nas escolhas conscientes de Firmina: “autora simpatiza com o que há de belo nas solidões dos campos […] preferiu tecer os fios do seu romance…”, esse trecho evidencia que a escritora era percebida como uma artista que manipulava elementos sociais e estilísticos em sua composição artística, fato que hoje podemos compreender como sendo uma tomada de posição de Maria Firmina dos Reis frente aos modelos disponíveis no campo literário do período.
O quarto parágrafo é bastante interessante porque ilumina questões referentes às condições de produção da escritora, que podem ser identificadas a seguir:
“Recolhida ao seu gabinete a sós consigo mesma, a autora brasileira tem procurado estudar os homens e as coisas, e o fruto desses esforços de sua vontade é: ─ ÚRSULA”.
Primeiro, o trecho informa que Firmina trabalhava solitária em um gabinete, esse é um dado importante, já que temos poucas referências que permitam reconstituir as condições em que Firmina criou sua obra; segundo, podemos perceber que para o/a resenhista, Maria Firmina possuía um projeto intelectual/literário – “estudar o homem e as coisas” – e identificava Úrsula como fruto da vontade da escritora, ou seja, reconhecia a intencionalidade de Firmina nas escolhas dos métodos de composição artística que desenvolvia.
A partir do quinto parágrafo, inicia-se a caracterização das personagens da obra: Úrsula é descrita como uma donzela solitária e isolada; de caráter ingênuo e puro, com o defeito de possuir uma alma ardente e apaixonada. Para a/o resenhista, os contrastes no caráter da personagem vinham dos traços de leviandade gerados nos conflitos entre a intensidade do amor devotado a Tancredo e o constante estado de prevenção que devia manter em relação ao cruel Comendador P., revelando qual era o contexto de opressão que homens submetiam as mulheres no oitocentos, ressaltando, que a pureza da alma de Úrsula, no entanto, era sempre conservada.
“A donzela, que vai aparecer-vos sob esse nome, vivendo isolada nas solitárias regiões do Norte não é um desses tipos de esmerada civilização, mas, longe de serem selvagens os seus costumes, Úrsula tinha o cunho de um caráter ingênuo e puro”.
Notamos que nessa caracterização, o/a autor/a recorre à contraposição – civilização versus selvagens (recorrente no século XIX), para caracterizar a personagem, e mobiliza ainda, noções que relacionam espaço geográfico e determinação da personalidade. As regiões do Norte do país são descritas como solitárias, e por isso, capazes de oferecer condições de isolamento que conformariam o caráter puro e ingênuo da personagem, sempre constante nos afetos. Essa ideia é retomada no sétimo parágrafo, mas com um tom de regionalismo bem acentuado, afirmando que Úrsula seria a representação literária da imaginação ardente das filhas do Norte, de sentimentos nobres, de afeto e dedicação. Promovendo a ideia de que a personagem se aproximava das moças locais, e isso era bem importante, pois os temas próximos do cotidiano, tanto brasileiro quanto regional, promoviam proximidade entre escritores e público leitor, e desta forma, Úrsula é identificada como representante da “mulher maranhense” , ou da”mulher do norte”.
Ao lado disso, também contrapõe outra imagem e representação social da mulher, oposta aos traços idealizados em Úrsula:
“essa donzela não se assemelha a tantas outras mulheres volúveis e inconsequentes que, aprendendo desde o berço a iludir, deslustram o seu sexo, mal compreendendo a missão de paz e de amor de que as incumbiu Deus”.
Ao afirmar uma oposição entre Úrsula/filha do norte/pura/constante nos afetos X mulheres/ volúveis/ inconsequentes, o/a autor/a (e o próprio jornal) constrói a imagem da mulher ideal e situa seu lugar social na esfera religiosa que conforma seu papel como sendo a representação de uma missão incumbida por Deus, ou seja, para o/a redator/a, o destino social da mulher seria realizar uma missão divina. As mulheres que fugissem a esse modelo seriam relegadas à categoria das que “não compreendiam”, ou seja, passavam a ser definidas pela ideia de ausência de capacidades, sugerindo que as “tantas outras mulheres” só se comportavam de forma diferente porque não possuiam capacidade de compreensão. A partir disso, a/o resenhista (e o jornal?) explicita seu ponto de vista sobre o lugar e o papel das mulheres na sociedade do período.
Prosseguindo, a caracterização de Tancredo e de Comendador P. está contida no oitavo parágrafo. Tancredo é descrito em uma linha e Úrsula é o parâmetro de comparação moral do personagem, como vemos: “Menos ardente não era o coração do jovem Tancredo”. O Comendador P. é definido pela inveja, amor terrível, e apresentado como alguém que não sabe perdoar.
O nono parágrafo é um parágrafo também bastante rico e interessante: primeiro, apresenta Túlio e Susana, personagens escravos; depois, lança elementos que permitem entrever, mais uma vez, um possível projeto intelectual da escritora e; em terceiro, lança pistas a respeito do processo de composição e de criação artística de Maria Firmina. O parágrafo integral é assim:
“Túlio e Susana representam essa porção do gênero humano tão recomendável pelas suas desditas ─ O Escravo! ─. A autora tem meditado sobre a sorte desses desgraçados entes, tem-lhes escutado as lacrimosas nênias e o gemer saudoso, a recordação de uma vida que já lá passou, mas que era bela nas regiões da África!…”
Vemos que nele há a indicação de que a reflexão sobre a condição do escravo parecia ser um projeto intelectual de Firmina , quando afirma “autora tem meditado sobre a sorte desses desgraçados entes”, fica explícita a ideia de tempo, ou seja, sugere-se que já há algum tempo Firmina viria pesquisando, refletindo e escrevendo sobre a questão da condição do negro na sociedade escravista, delineando traços que seriam desenvolvidos em sua produção literária, ao longo dos anos.
Além disso, é possível encontrar pistas a respeito do processo de composição artística e do processo de criação da escritora, a partir da informação de que Firmina “escuta[va] as lacrimosas nênias e o gemer saudoso, a recordação [dos escravos], podemos compreende melhor os métodos utlizados por Firmina na composição da obra. Uma informação bastante relevante que confirma hipóteses desenvolvidas em estudos sobre a obra firminiana. Corrobora, por exemplo, com os seguintes argumentos:
“No ano de publicação do conto “A Escrava”, encontra-se essa interessante anotação: “Porfíria recebeu a liberdade a 17 do mesmo mês, e ano” (Março, 1887). Essa anotação pode sugerir que Maria Firmina retirava do seu cotidiano mais imediato, muito daquilo que ela representava na forma literária. […] A inclusão desse registro em seu diário, ao nosso ver, nos leva a concordar, por exemplo, com “Luiza Lobo [LOBO, 1993, p.229] quando ela afirma que “Mãe Susana, de Úrsula, assemelha-se a mãe Joana, de ‘A Escrava’, no sentido de nos transmitir a impressão de se tratarem de pessoas que Maria Firmina realmente conheceu. […] Assim entendemos que a pesquisadora sugere a possibilidade de Maria Firmina ter colhido depoimentos para compor sua obra, além, também, das ideias anotadas em Álbum.” (DIOGO, 2016, p.54) .
Essa abordagem pode ser um viés analítico interessante para a investigação dos processos de criação e composição de Firmina. “Aqui, é importante destacar que o romance de Harriet Stowe, A Cabana do Pai Tomás, que […] se tornou modelo de texto antiescravista nos anos de 1850 em diante, também pode ter se apropriado de uma retórica cotidiana da imprensa ou de biografias de ex-escravos para criar a trama e as personagens de seu romance” (DIOGO, 2016, p. 125). A partir disso, podemos pensar que Maria Firmina, que era uma leitoradas obras de sua época, contava com esses modelos, para seguir ou recusar, de forma a trabalhar para inserir – intencionalmente – sua obra no contexto de uma “tradição” literária mais ampla , e ajustar certos elementos e certos procedimentos em sua configuração artística particular. Esse raciocínio faz muito sentido, principalmente se levarmos em conta que no século XIX, o/a autor/a não era uma instância relevante no valor atribuído à obra, importava mesmo era que as narrativas lembrassem e se aproximassem de “narrativas notáveis e famosas” (SOUZA, 2017, p.183).
Ao mesmo tempo, também é possível apreender da leitura do parágrafo o posicionamento da/o resenhista (e do jornal) sobre a condição dos escravos no Brasil, no trecho acima, eles são identificados como, “porção do gênero humano”, “entes desgraçados”, recomendáveis pelas adversidades; entendemos com isso, que os escravos são classificados como pertencentes à categoria dos humanos (“desgraçados”, porém humanos), e preferindo não avançar aqui na análise dos significados da restrição contidos na expressão “porção do gênero humano”, entendemos que é possível apreender que, para/a redator/a da resenha, a condição do escravo é compreendida para além da condição de mercadoria atribuída ao negro, descendente de africano, pelo ordenamento jurídico brasileiro da época, e reconhece que, mesmo no interior das relações escravistas que visavam solapar as bases de constituição do indivíduo negro, os escravos eram críticos com relação ao próprio destino e expressavam essa visão crítica, em depoimentos que faziam, nos quais articulavam recordações que podiam – ou atingir um tom de lamentação das “lacrimosas nênias” ou do “gemer saudoso”; ou, em outras vezes, atingir um tom de afirmação, presentes nas memórias que estabeleciam laços com uma vida bela passada na África.
Esse ato possível ao escravo – o de organizar a história de sua trajetória de vida na forma de um depoimento coerente-, demostra o esforço de criar uma história pessoal, de atribuir significado a todo o conjunto de experiências da vida individual, e mostra que em grande medida, o relato foi o espaço de constituição subjetividade do negro (escravo ou forro). Firmina, desta forma, ouvindo esses depoimentos, como sugere a resenha, teria tido condições de “identificar representações do desejo, por parte do escravo, de ser indivíduo; do desejo de criar uma história pessoal; do desejo de atribuir significado à vida individual (e qual seria ele?), como marcas de subjetivação”(DIOGO, 2016, p. 132). Assim, a resenha contribui para compreensão de “como, no século XIX, o romance aborda um problema complexo: o da possibilidade dos cativos ou libertos construírem uma história pessoal” (Idem), além de abrir novas possibilidades interpretativas da obra e das práticas empregadas em sua confecção.
Por fim, o décimo parágrafo fecha o texto com uma síntese geral: o romance “é um brado” (voz/clamor) humanista. E diante dessa constatação, a/o resenhista conclui o anúncio fazendo um apelo bastante ambíguo ao público: “desculpai – a…” Solicita-se que o público desculpe o ponto de vista humanista em que a obra está fundada? ou que desculpe as vozes da narrativa, já que estas “bradam” seus clamores ao longo de todo o romance? Enfim, a partir de agora, temos novos elementos para aprofundarmos a investigação e compreensão da obra literária de Maria Firmina dos Reis.
Após a análise da resenha, podemos afirmar que nela encontram-se expressas importantes indicações de um possível projeto intelectual/literário de Maria Firmina dos Reis que, a partir de 1857, perpassaria toda sua obra: o estudo do “homem” [da humanidade] e das coisas, atravessado e aprofundado pela reflexão sobre a condição do negro na sociedade escravista oitocentista brasileira. Afirmamos que nela ainda é possível encontrar pistas sobre as condições de produção, sobre o processo criativo da escritora e também sobre o processo de composição artística utilizado por Firmina.
De modo que agora, acrescentando mais algumas peças nesse quebra cabeças que a trajetória de Maria Firmina dos Reis conforma, podemos vê-la, como uma mulher observadora e crítica de sua realidade, interagindo em espaços públicos de intelectualidade (escolas, jornais, algumas vezes “salões”); em espaços de marginalidade (escutando dos escravos as lacrimosas nênias e o gemer saudoso, a recordação de uma vida bela nas regiões da África! ); e a partir disso, no espaço privado (recolhida ao seu gabinete a sós consigo mesma, procurando estudar os homens e as coisas, meditando sobre a sorte dos desgraçados escravos), vemos como a autora produzia sua obra literária.
Em agosto de 1860 outras três resenhas foram publicadas, uma em A Imprensa (01/08/1860), a segunda no Jornal do Comércio (04/08/1860), e a última em A Moderação (11/08/1860). Outras duas apreciações foram publicadas em 1861, em A Verdadeira Marmota (13/05/1861) e em O Jardim das Maranhenses (29/09/1861), encerrando as publicações críticas conhecidas do romance Úrsula, nos periódicos do século XIX.
Por fim, entendemos que essa resenha de Úrsula, de 1857, lança alguns feixes de luz sobre as condições de composição da obra e sobre as práticas de Firmina, que iluminam caminhos analíticos e interpretativos a serem desvendados, nesse constante devir que é a leitura da obra dessa escritora incrível do século XIX.
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- Uma versão deste texto foi publicada posteriormente em: DIOGO, Luciana Martins. “A primeira resenha de Úrsula na imprensa maranhense“. Afluente: Revista de Letras e Linguística, v. 3, n. 8, mai/ago 2018.
Referências Bibliográficas
- CARVALHO, Jéssica Catharine Barbosa de. Literatura e atitudes políticas: olhares sobre o feminino e antiescravismo na obra de Maria Firmina dos Reis. 128 f. Dissertação (Mestrado em Letras) – Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal do Piauí, 2018. Disponível em: https://drive.google.com/drive/folders/12dtFCFkzJsfjKUAhBh_VviO7iFym8tyl. Acesso em Maio de 2018.
- DIOGO, Luciana Martins. “Firmina por Firmina: interpretando seus álbuns e diários”, p.48-56. In: Da sujeição à subjetivação: a literatura como espaço de construção da subjetividade, os casos das obras “Úrsula” e “A Escrava” de Maria Firmina dos Reis. 220 f. Dissertação (Mestrado em Estudos Brasileiros) – Instituto de Estudos Brasileiros. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/31/31131/tde-01112016-103251/pt-br.php. Acesso em Maio de 2018.
- LOBO, Luiza. ““Auto-retrato de uma pioneira abolicionista”. In: Crítica sem Juízo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, pp. 222-238, 1993.
- SOUZA, Antonia Pereira de. A prosa de ficção nos jornais do Maranhão Oitocentista. 329 Tese (Doutorado) – UFPB/ CCHL Programa de Pós-graduação em Letras (PPGL), da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), João Pessoa, 2017. Disponível em: http://www.cchla.ufpb.br/ppgl/wp-content/uploads/2017/04/A-PROSA-DE-FIC%C3%87%C3%83O-NOS-JORNAIS-DO-MARANH%C3%83O-OITOCENTISTA.pdf Acesso em Maio de 2018.
- XIMENES, Sérgio Barcellos. “A história do romance Úrsula“. In: A Arte Literária| Blog.